É um relato de uma vida na nossa. A vida do nosso filho Theo.

Os Planos
Passamos 2 anos tentando engravidar, lidando com a falta de um ovário e outro ovário policístico. Decidimos por fim buscar um tratamento de fertilização em janeiro de 2019. O novo ciclo menstrual não começou e não conseguimos iniciar o tratamento, simplesmente porque descobri que tinha acabado de engravidar naturalmente naquele mês.Um sonho se realizando. É como se a natureza tivesse tomado as rédeas do processo. Trouxe vida, luz e alegria para nossos dias e para nossas famílias.

Eu e meu marido embarcamos de cabeça nessa jornada de gravidez, pela graça e pela natureza. Aproveitamos cada pequeno momento mágico, com todas as inseguranças e neuras que qualquer casal de pais de primeira viagem teria, mas tudo ia muito bem: na 5ª semana o embrião estava implantado no lugar certo, na 8ª semana o bebê era visível e o coraçãozinho batia forte, na translucência nucal tudo normal (com direito a uma dancinha linda do bebê no útero), na 13ª semana descobrimos que esperávamos um menino.

Com 8 semanas contamos a novidade para nossa família e foi maravilhoso receber o carinho de todos. Praticamente não tive enjoos nem qualquer outro problema nesse período. Fazia caminhada, corrida e pilates regularmente. Com 20 semanas o quarto estava pronto, lindo, e as roupinhas que os avós compraram estavam prontinhas na cômoda. Dos preparativos só faltava o nome mesmo.

O Diagnóstico

Chegou a 23ª semana. Como sempre, estávamos ansiosos para ver nosso filho no ultrassom do mês, que seria o morfológico do 2º trimestre. No instante que o exame começou, vi que a expressão do nosso obstetra ficou muito séria. Na tela já dava para ter uma pista do problema: praticamente não havia líquido amniótico. Eu esperava que fosse apenas um pequeno percalço, que eu precisaria de repouso ou algo assim. Mas não.

Quase 1 hora depois, ele concluiu o exame, após repetir dezenas de medições e aferições, nos detalhou a situação. O médico explicou que os dois rins do nosso filho estavam gravemente comprometidos, por uma displasia (provavelmente Doença Policística Renal Recessiva, malformação de origem genética). Por isso não havia urina. E por isso quase não havia líquido amniótico. E por isso os pulmões do nosso filho não se desenvolveriam. E por essa infeliz sequência ele provavelmente não respiraria sozinho e entraria em falência renal pouco tempo depois de nascer.

O prognóstico não era preciso mas era trágico para nós: um parto prematuro de um bebê que teria pouquíssimas chances de sobreviver, mesmo na UTI neonatal. Não havia um tratamento possível/satisfatório para o quadro. Não era só um bebê com diagnóstico fatal, era o destino do nosso filho, tão amado e esperado. Lembro de ouvir o as explicações do obstetra, que foi muito delicado em dar a notícia, mas que foi claro em não dar falsas esperanças.

Cada frase que eu ouvia era como uma chicotada, me sentia diminuindo, diminuindo, diminuindo. Quase não conseguia respirar ou reagir. Sou grata por ter tido meu companheiro ao meu lado nesse momento, que imediatamente fez as perguntas necessárias, buscou referência para acompanhamento psiquiátrico e mais tarde contou para minha família o que estava acontecendo. Ao sair do consultório me percebi num enorme vazio repleto de dor.

Chorei meu desespero na porta clínica pedindo para ir embora dali. Eu tive o colo do meu companheiro que me prometeu que faríamos tudo de novo, quantas vezes fossem necessárias, até ter um filho no nosso colo.
Abro parênteses aqui para falar sobre coisas importantes, porque é muito fácil nos julgar e são muitos os aspectos que precisam ser considerados. Nessa situação, obviamente havia a vida do nosso filho precioso, mas estava em jogo também minha maternidade, a paternidade do meu marido, nosso casamento e relacionamento, nossas expectativas, nossos planos, entre outros.

Ao dizer que faríamos tudo novamente e buscaríamos uma nova gravidez não estávamos desprezando a situação de nosso filho, mas sim acalentando nossa maternidade e paternidade. Isso fez muita diferença, pois nenhuma loja de roupinha de bebê nem a decoração do quartinho me trouxe ressentimento. Só senti o desejo de ser mãe crescer ainda mais.Sem chão e sem consolo, repetimos o exame mais duas vezes e buscamos mais três opiniões médicas diferentes em uma semana. O diagnóstico foi praticamente unânime. Nessa semana definimos seu nome: Theo.

A Gestação

Mantivemos a doula informada da situação e ela nos auxiliou com muito material, apoio integral, e visita para preparar e decidir tudo o que podia ser decidido no processo. Ela nos tranquilizou sobre nossos medos e nos acompanhou de perto.

Meu marido, fiel escudeiro, me blindou do mundo, do assédio e curiosidade de todos, o que foi muito bom mesmo. Nos recolhemos em casa para processar a informação. Durante meses mergulhamos num luto vivo, luto por um filho que ainda vivia e chutava forte o meu ventre. Vivemos todas as fases do luto, negação, raiva, barganha, depressão, aceitação. Intercalamos dias de total consciência da situação com dias de desespero e falta de chão sob os pés para seguir com o básico da vida.

Os sentimentos vinham em ondas, algumas mais brandas, outras devastadoras, com frequência as ondas de sentimentos se misturam, se contradizem. Passei madrugadas em branco. Chorei lágrimas incontáveis de pena, de amor, de sofrimento, de indignação, de expectativas mutiladas, de frustração. Buscamos ajuda psiquiátrica, o que se mostrou indispensável no processo.

Eu tinha medo de me afundar em depressão pós-parto, mas a ajuda foi muito mais ampla que isso. A terapia ajudou demais a entender e aceitar os sentimentos envolvidos, a buscar um centro novamente: o foco no amor de nossa pequena família em sua jornada surreal.Depois de um mês, nos braços do meu marido, decidi que era hora de parar de chorar.

Reuni meus cacos e percebi que estava presenciando algo lindo, mágico: a vida do nosso primeiro filho, que seria curta mas eu faria com que fosse especial. Se já teve sangue, suor e lágrimas até aquele momento, teria também momentos alegres, música, chocolate, pizza, dança, praia. Não quer dizer que não chorei pelo Theo todos os dias restantes da gestação, mas passei a focar na serenidade do momento e a me preparar para o parto, que obviamente seria um momento importante na vida do meu filho e na minha.

Esse teria que ser um momento, um ritual, uma experiência boa.E assim seguimos. O plano traçado foi a indução do parto com 28 semanas, considerada a viabilidade do prematuro. Theo estava pélvico. Insisti com o médico em tentar o parto normal antes de decidir por uma cesárea porque perderíamos nosso filho, não o veria dar os primeiros passos, não o levaria à escola no primeiro dia de aula ou ao altar no seu casamento. Então essa era minha chance de interação, de ritual de vida com ele.

Quando chegamos às 28 semanas não conseguimos liberação da UTI de uma das maternidades porque não havia diálise disponível. Com 29 semanas o ILA havia piorado, caindo para apenas 2. Marcamos o parto para quando estivessemos com 30 semanas de gestação em outra maternidade, com mais recursos na UTI neonatal. Quando chegaram as 30 semanas partimos para a consulta com o carro pronto para o parto no mesmo dia, mala de maternidade, bola de pilates, kit de coleta de sangue para a pesquisa genética e todas as nossas expectativas acumuladas, ensaio de gestante feito, despedida do barrigão feita.

Ao chegar na consultório descobrimos que não conseguimos liberação da UTI da nova maternidade. Teríamos que continuar aguardando.
Avisamos a doula que já estava de sobreaviso e fomos para casa novamente; eu só queria dormir, apagar, quis muito um porre ou overdose (obviamente o não fiz por amor infinito ao Theo).

A depressão voltou com tudo, apesar da medicação que já tomávamos. As forças tinham acabado mesmo. Providenciamos meu afastamento do trabalho porque raciocinar tinha se tornado difícil demais. Impotente, tive que assistir meu marido, meu grande trunfo e apoio, sofrer com crises de pânico e ansiedade, tentando todos os dias manter o equilíbrio entre picos de euforia e tristeza.

Como doeu não conseguir ajudar de verdade. Apesar de a perda gestacional/neonatal ser algo relativamente frequente na humanidade, as pessoas ainda têm muita dificuldade para lidar com esse tipo de luto. Aliás, percebi que todos fogem um pouco de lidar e compreender o sentimento de luto. Nós descobrimos tanto apoio de nossa família, amigos e colegas de trabalho que nos ajudou em todos os passos e aqueceu o nosso coração.

Meu conselho para quem passar por algo assim é ter uma rede de apoio de qualidade e se possível acompanhamento profissional. Se você conhece alguém que está passando por isso, pelo amor de deus, pare de dizer coisas como “foi melhor assim” ou “logo você engravida de novo”, porque cada filho é único, especial e não será esquecido nunca. Ofereça apoio, suporte, paciência e abraços sem cobrar explicações.

A realidade de perder um filho é triste, mas no nosso caso sou grata por termos descoberto a condição cedo, pois nos deu a oportunidade de processar a informação aos poucos, buscar ajuda psicológica/psiquiátrica, aproveitar a gestação ao máximo, gerenciar expectativas e tudo que acompanha esse “pacote”.E a gestação seguiu. Com 32 semanas o ILA voltou a subir.

Normalmente, neste ponto, o quadro poderia ter evoluído para a ausência total de líquido, mas isso não aconteceu. Assim, a indicação da via de parto mudou, já que poderíamos considerar uma possibilidade (ainda que pequena) de sobrevida do nosso bebê, conscientes que isso poderia significar um longo período de internação e necessidade de tratamentos agressivos como a diálise e transplante quando houvesse viabilidade.

No início da gestação eu tinha planejado um parto natural, mas quando descobrimos as complicações mudei meus planos para um parto com analgesia, com consciência e sem ressentimentos. Queria focar esse momento no rito de passagem em si e não na dor, se é que isso faz algum sentido. Nesse ponto já tínhamos entendido que a vida não tem rédeas, parto menos ainda. Mesmo que o plano inicial fosse um parto normal, não poderíamos entrar em crise se fosse necessária uma cesárea.

Foi justamente o posicionamento clínico nesse momento. Se permitir mudar de ideia ou de planos pode ter uma beleza única, mas não é nada fácil, arde e coça na alma.O plano de parto passou a ser uma cesárea o mais próximo possível do termo, que daria melhores chances ao Theo. Mesmo assim, para mim esse ainda teria que ser um momento, um ritual, uma experiência boa.

Conversei com a doula que concordou com a mudança e aliviou demais o peso no meu coração. O parto idealizado ficaria para a próxima gestação.Mas entre um ponto e outro (diagnóstico e parto) sabe o que tem? Tem tempo, tempo e mais tempo. Ah e como o tempo pode ser cruel, extenuante, dolorido, opressor.

Numa gestação meio “Shroedinger”, esperamos ao mesmo tempo por um bebê que poderia não sobreviver ao parto ou então respirar com pouca ajuda; que poderia sobreviver por poucos dias ou poderia ficar meses internado e sedado em UTI na fila de transplante; que poderia ter as complicações associadas ao quadro de ARPKD de fígado, coração, pressão ou não. Enquanto isso, a depressão não deu trégua não.

Além do tempo tem o desgaste de dar satisfações o tempo todo para colegas, amigos, família quando tudo o que se tem são dúvidas. Cada satisfação desenterra todos os fantasmas do cérebro. Ao gerenciar as expectativas dos demais quanto à letalidade do quadro às vezes pode parecer que estamos desejando um final triste para a história do nosso filho, mas não é. É só a clareza da situação que esmagava nossos desejos e anseios.

Eu só queria meu bebê no meu colo, mais que tudo.Não quero parecer egoísta ou desdenhar ninguém, mas que inveja que me dava de quem passa o terceiro trimestre preocupada com alergias e chupetas.

Os Fiapos de Esperança

Com 35 semanas o ILA subiu para 7,7, o melhor resultado desde o diagnóstico, para a surpresa e alegria de todos!!! A esperança começou a ganhar força. Começamos então a buscar os preparativos e procedimentos para algum tempo de sobrevida do Theo. Realizamos novos exames que confirmaram o aumento do volume de líquido amniótico, apresentaram normalidade nos movimentos do diafragma (indicando que não havia hipoplasia do pulmão e que a respiração do Theo poderia não estar comprometida), fígado bem desenvolvido sem qualquer anomalia aparente, sem circulares de cordão no pescoço.

Ver seu nariz, boquinha e cabelinhos no exame me encheu de um amor intenso, descompromissado e envolvente. Tantas “notícias boas” deixaram meu marido um pouco desesperado, mas eufórico. Ele decidiu que, em caso de sobrevida do Theo, ele é que ficaria em casa para os cuidados integrais, considerando que provavelmente faríamos diálise diariamente ou precisaríamos de cuidados intensos para uma criança dependente de imunossupressores após um transplante.

Me apaixonei mais ainda por ele quando ele me contou dessa decisão, por seu comprometimento e amor. No final da 35ª semana consultamos uma nefropediatra, um anjo em nossas vidas, que nos deu uma nova perspectiva sobre o quadro de saúde do Theo. Por tratar apenas dos casos de sobrevivência, sua abordagem foi mais leve e confiante. Sem desconsiderar a gravidade da doença e dos possíveis desfechos ruins (não era necessário abordá-los a fundo, já que foram pesquisados arduamente durante os meses anteriores) deixou claro que só conseguiríamos avaliar se haveria função renal após nascimento e que a doença pode ter diversos níveis de severidade.

Nos contou de casos graves e também dos mais brandos que acompanha. Nos deu seu contato pessoal para voltarmos a conversar quando o Theo nascesse. Voltamos pra casa e falei para meu marido: que conversa boa, me sinto tranquila depois de muito tempo!

O Parto


Algumas horas se passaram, a noite caiu e fui dormir. Pouquíssimo tempo depois de adormecer, lá pela 1:30 da manhã, acordei com um líquido escorrendo pela perna. Levantei rápido e vi a calcinha bem molhada. Será que fiz xixi? Não. A bolsa! Só lembro de pensar “agora não, agora não, por favor”, não estava nem um pouquinho preparada para me despedir do meu filho. 

Avisei meu marido que nem tinha ido dormir ainda: Cris, tá descansado? Acho que minha bolsa estourou. Avisamos a doula.

Ligamos para o obstetra que pediu para avaliar na maternidade se realmente era a bolsa (com pouco líquido não seria uma cachoeira de água). Como sabíamos que o trabalho de parto pode ser algo demorado, trocamos de roupa com calma, terminamos de botar no carro todos os itens que faltavam para a maternidade, alimentamos os gatos, guardamos as comidas e saímos cerca de trinta minutos depois, bastante tranquilos. Na primeira curva que o carro fez comecei a sentir dor.

Fiquei na dúvida se era mesmo uma contração, porque não era tão ruim assim. Dali a alguns minutos mais uma, bem mais forte. Definitivamente eram contrações. Mais um pouco e mais uma. Meu marido que dirigia e controlava o tempo falou que as contrações já estavam de 5 em 5 minutos. Nossa casa fica a 25km da maternidade e não havia trânsito de madrugada. Ainda bem.

Para mim o trajeto parecia interminável já que as contrações estavam cada vez mais frequentes e bem mais violentas. Quando chegamos no elevado de acesso à ponte entre ilha e continente senti a pressão pélvica aumentar, a dor aumentar, o útero empurrava sem controle e sem parar. Mesmo sem experiência nenhuma dava pra saber que tudo estava indo rápido demais. Chegando no bairro da maternidade a dor ao chacoalhar nos paralelepípedos aumentou ainda mais.

A obstetra de plantão tinha acabado de iniciar outra cesárea. Na minha avaliação a enfermeira fez o toque e disse: Olha, eu não sinto a bolsa, sinto outra coisa. Eu expliquei que ele estava pélvico e ela complementou: É, definitivamente eu estou sentindo o pé dele pra fora do colo do útero. Eu já estava de 4 para 5 de dilatação. Estava tudo correndo rápido demais mesmo.

Coloquei a roupa para o centro cirúrgico. Em poucos minutos chegaram o obstetra, a doula e a fotógrafa. Descemos para a área cirúrgica, mas tivemos que aguardar alguns minutos para a preparação da sala de cirurgia. Meu marido voltou para o carro para buscar o kit de coleta de sangue para extração de DNA e acabou se perdendo na volta, não achava mais o celular, o carregador e os próprios sapatos, e eu só queria que ele estivesse logo ali pra me segurar já que intervalo entre contrações estava bem curto.


A doula massageava minhas costas e me tranquilizava. A dor parecia algo explodindo e me rasgando por dentro e ao mesmo tempo os hormônios do parto inundaram meu corpo como uma droga alucinógena bem potente que deixava tudo tranquilo, feliz e estranhamente colorido. Partolândia existe e tem uma química forte.

Entramos no centro cirúrgico onde felizmente a doula pode ficar o tempo todo comigo, durante a preparação e a anestesia, enquanto meu marido esperava no corredor. A preparação é um momento de extrema ansiedade para a gestante, mas a equipe médica não tem tempo de informar ou tranquilizar a mãe (ou tem outras prioridades). A doula foi muito importante dando apoio intensivo e focado nessa minha ansiedade.

A preparação foi rápida e a anestesia trouxe um alívio grande. E eu estava querendo muito aquela anestesia naquele momento para aliviar a dor, mas foi uma pena sair daquele estado de transe químico partolândico. Tudo pronto: chega meu marido, nosso obstetra, a obstetra plantonista, a pediatra. Chega até uma enfermeira que achou o celular do maridão perdido no vestiário feminino (ele estava perdido mesmo).

Minhas lágrimas escorriam pelo meu rosto de ansiedade e medo. Todo parto é sempre uma separação. A mãe quer que o bebê nasça mas inconscientemente quer continuar a gestação. No nosso caso isso foi mais intenso, pois enquanto estava na minha barriga, o Theo tinha sangue filtrado e oxigênio fresquinho no cordão, aqui fora estaria por conta própria. E a gente sabia que ele tinha poucas chances de conseguir… caprichos e indelicadezas da natureza.

Por isso tudo sei que antes de parir um filho, pari a mãe que sou.Conhecendo toda a nossa situação, a equipe toda foi muito respeitosa e não lembro de ter ouvido conversas paralelas, todos estavam atentos e respeitosos. Somos imensamente gratos por esse respeito e considero que essa postura (da qual só me dei conta dias depois) foi um dos aspectos mais importantes da humanização do parto.

Conforme o relato do obstetra, na hora da cesárea um dos pés do Theo já estava na vagina, quadril encaixado no colo do útero (que não estava totalmente dilatado) e a outra perna esticada para cima junto da cabeça. Foi necessário um bocado de força dos obstetras para tirá-lo daquela posição – posteriormente foi realizado inclusive raio-x para ter certeza que a perna não havia quebrado na manobra.

Foto: Sabrina Pierri Fotografia

Às 3:44 da manhã a doula avisou que já estava nascendo e tudo ficou em câmera lenta. Ele chorou. E se ele chorava queria dizer que seu pulmão poderia funcionar. Foi o nhéh mais emocionante que já ouvi. Para completar alguém anunciou que ele fez xixi assim que o tiraram da barriga. Aí eu já estava incrédula com o tamanho da nossa sorte.

Não pude viver um dos momentos que mais queria de um parto: o momento de pegá-lo no colo logo depois de nascer. A equipe de neonatologia precisava atuar imediatamente e assim foi feito, com grande profissionalismo. Também não houve a oportunidade de esperar o cordão parar de pulsar ou de deixar o pai cortar, mas inclusive para ele isso era um pouco secundário naquele momento.

Foto: Sabrina Pierri Fotografia

O pai pôde acompanhar os primeiros cuidados médicos do bebê enquanto os obstetras terminavam a cirurgia. Vários equipamentos começaram a apitar ao mesmo tempo e ouvi a voz bem calma da doula explicando que os alarmes estavam tocando apenas porque o Theo não estava ligado a todos os equipamentos do leito da UTI. Eu teria entrado em um pânico desnecessário se ela não estivesse ali ao meu lado.Minutos depois a pediatra veio me apresentá-lo antes de levá-lo à UTI Neonatal.

Ele era tão pequeno, um ser humano tão indefeso, me apaixonei por ele num nível surreal na primeira oportunidade de sentir seu cheiro e a maciez da sua pele. Beijei-o na bochecha com todo amor e medo que sentia.O Theo foi levado para a UTI Neonatal para ser entubado, mas chorou e esperneou tanto que não conseguiram e ele ficou as primeiras horas de vida apenas com o suporte de ventilação do CPAP. Fiquei distante dele por 7 horas esperando terminar o efeito da anestesia, mas para mim pareceu muito mais que isso.

Nesse período meu marido ia vê-lo na Neo, fez o primeiro contato pele à pele, cantava pra ele e contrabandeava fotos para mim, como ele mesmo dizia.E assim foi nosso parto, diferente dos cenários que eu tinha imaginado, mas juntando o lado bom de vários aspectos: via de parto alta com indicação clínica clara, a mais segura para a situação de saúde do bebê, com a experiência de parto normal que vai desde a surpresa da data até as contrações e os hormônios envolvidos.
Não poderia ter sido melhor.

UTI Neonatal

Nós nos preparamos no último mês da gestação para o fato de que se o Theo sobrevivesse ao parto ele ficaria na UTI para cuidados médicos necessários, exames, medicação, diálise, etc. Foi importante essa consciência pois gerenciamento de expectativa é tudo.O Theo ficou internado numa unidade muito bem equipada, cercada por uma equipe muito amorosa de médicos e enfermeiras.

A internação do recém-nascido é baseada em ciclos bem rígidos de 3 horas e não é exagero dizer que tudo funciona como um reloginho.Assim que passou o efeito da anestesia pude sentar, me alimentar e tomar banho. Fiz tudo isso correndo para ir logo abraçar meu bebê. Dar colo foi excepcional e aliviava muito as dores do pós-cirúrgico. Ele era muito lindo, não tinha as feições típicas da sequência de Potter que estávamos esperando. Apesar das tentativas feitas com a ajuda bem atenciosa das enfermeiras, o Theo ainda não conseguia sugar no peito no primeiro dia, então a alimentação foi feita por sonda.


Nos primeiros dias de colostro fizemos a ordenha manual, que no meu caso era dolorida e demorada. Não conseguia extrair sozinha, mas meu marido tinha manha. Também não conseguia extrair o suficiente para todas as mamadas da madrugada, então a alimentação dele era complementada com fórmula.Aliás, a recomendação que recebemos da equipe da Neo foi descansar e dormir durante a noite. Assim os pais estariam descansados durante o dia. Mas a primeira madrugada longe dele foi cruel para a mãe recém parida.

Acordei angustiada com uma culpa voraz por não estar presente para todas as necessidades dele. Ao perceber isso meu marido sugeriu que eu descesse para encontrar o Theo e depois retornasse para continuar a dormir. Quando eu cheguei lá ele já estava dormindo, de banho tomado, fralda limpa, tinha acabado de mamar e estava muito tranquilo. Percebi naquele momento que ser mãe não se resume à atender às necessidades fisiológicas, que eu não era a única pessoa capaz de cuidar dele e que delegar os cuidados básicos seria o melhor dos cenários tanto para mim quanto para ele naquele momento.

Ele é, afinal, um ser humano como eu e não minha posse.A amamentação foi um pouco complexa no começo pois ele ainda não sugava o peito.  A equipe de enfermagem e a fonoaudióloga auxiliaram muito para que ele aprendesse a pega corretamente. O ambiente, por outro lado, é hostil, com equipamentos apitando todo o tempo, outros bebês chorando, sem espaço para que os pais sentem ao lado das mães, sempre quente, com meia dúzia de mães seminuas amamentando ao mesmo tempo sob o olhar das enfermeiras.

Quem consegue amamentar assim na UTI amamenta em qualquer lugar do mundo, sob qualquer pressão. Só na noite do dia seguinte é que consegui amamentar de verdade pela primeira vez e foi uma sensação dos céus. É até difícil definir de verdade se é a mãe que alimenta o bebê de leite ou se é o bebê que alimenta a mãe de amor incondicional e visceral.Eu tive alta depois de 48 horas depois do parto. Guardei minhas coisas e fomos para casa providenciar os próximos passos.

Quando chegamos em casa pendurei o nome dele na porta do seu quarto e chorei muito de alívio. Nosso filho estava vivo. Muito vivo. Milagrosamente vivo. Após a alta a logística ficou um pouco mais difícil, já que no hospital não há espaço apropriado para o descanso dos pais ou para a ordenha. Ficamos hospedados na casa de parentes próximo à maternidade para diminuir os deslocamentos durante o dia.Os exames de sangue e urina do Theo estavam cada dia mais estáveis.
A diurese era satisfatória todos os dias e por isso ele não precisou de nenhum dia de diálise durante a internação.

No terceiro dia puderam tirar o acesso venoso. Apenas a pressão arterial seguia muito alta, sem resposta ao remédio. Todos os dados foram acompanhados a distância pela nefropediatra que coordenou o tratamento.A apojadura só aconteceu no dia 4 trazendo o desconforto usual da fase mas aumentando bastante a produção de leite tão necessária para garantir leite materno na “marmita” para as mamadas da madrugada.

Como ele tomava o complemento de alimentação pela sonda, se não houvesse leite materno eles davam fórmula, mas a fórmula deixava o Theo extremamente estufado e sonolento. Por diversas vezes sequer conseguimos acordá-lo no horário da amamentação, mesmo com algodão molhado com água gelada no pescoço. Isso só postergou a retirada da sonda.No quinto dia de UTI aumentaram a dose do remédio da pressão e alugamos uma bomba elétrica para a ordenha. Fomos entrando no ritmo alucinante da UTI.

Só no sétimo dia migramos para livre demanda sem a sonda. Isso fez com que ele ficasse mais desperto e engrenasse definitivamente na amamentação. A pressão começou ter médias um pouco mais baixas.Na nona manhã de internação, durante a amamentação, a pediatra veio nos perguntar se estávamos prontos pra ir pra casa. Seria ótimo, eu ri. “Verdade, o Theo tá de alta”.

Nem acreditei, flutuei, chorei. O Theo mamava tranquilo, feliz também. Seu acompanhamento passaria a ser ambulatorial e seu tratamento poderia ser feito em casa.Ali começava o resto das nossas vidas. Começava a “vida normal” para o Theo ao sair do hospital.

Nossa pequena família estava pronta para todos os desafios que viriam a partir dali. Não tem sido poucos nem fáceis esses desafios – lidamos com complicações dos rins, fígado, coração, cérebro, medicação pesada – mas juntos somos mais fortes, valorizamos cada dia de sobrevivência e pelo Theo tudo vale a pena.

Respeito muito a experiência de luto que nos atingiu. Várias vezes que amamento dedico mentalmente aquele momento às mães que não tiveram esta oportunidade.

Se pudesse eu pegaria cada uma delas no colo e as embalaria até dormir, mas sei que nem isso diminuiria sua dor.
Quanto aos planos para o futuro, pretendemos engravidar novamente no futuro.
As certezas que temos, por enquanto, são a necessidade de um aconselhamento genético (já que existe chance de recorrência do problema) e que a Cris será nossa doula novamente na próxima jornada.