Carta Fictícia escrita pela parteira Ana Cristina Duarte que fala sobre a realidade obstétrica Brasileira.
“Querida Amiga: saber da sua gravidez só me trouxe alegrias. Na verdade muitas alegrias e uma preocupação. Um dia o bebê vai nascer e eu temo pela qualidade desse nascimento, em tudo o que não depende de você e de sua vontade. Por isso eu queria aqui te contar porque é que você dificilmente escapará de uma cesariana, ainda que deseje ardentemente um parto natural/normal.
Bola de cristal? Imagina, você que pensa! Curso básico de estatística, terceiro ano colegial, lembra?
Primeiro vamos aos fatos. – A imensa maioria dos hospitais privados em nosso estado, em nossa cidade, têm por volta de 90 a 95% de cesarianas.- Tem três pesquisas científicas muito bacanas mostrando que 70% das mulheres querem parto normal. – E temos a Organização Mundial da Saúde dizendo que apenas 15% das mulheres precisam de cesárea.
Em algum momento, entre o começo do pré natal e o parto, as mulheres acabam na cesárea, não precisando e não desejando.
Por outro lado, vamos ao plano de saúde.
– Um médico de plano ganha por volta de 300 a 500 reais para realizar um parto.
– Supondo que ele esteja de plantão no dia e tenha que chamar um substituto para cobrir o plantão, ele vai pagar R$ 600 a R$ 800 para o substituto. Então ele já perdeu uns 200 a 500 reais para te atender.
– Se ele deixar de atender 6 horas de consultório por sua causa, são por volta de 20 consultas de 40 reais, assim por baixo. R$ 800 de prejuízo, no mínimo.
– Se ele tiver que pegar a estrada, pagar pedágio e chamar uma babá para dar conta das crianças, são R$ 300 reais.
– Portanto o fato é que parto normal, para os médicos de convênio, representa um prejuízo financeiro enorme.
E por fim, vamos à terceira questão. Eu chamo isso de “Fator Varella”. Disse Drauzio Varella certa vez em entrevista à Revista Claudia:- Parto normal é muito chato. É muito mais fácil botar a mulher na maca e “Pumba!” fazer uma cesárea.
O fato é que muitos obstetras não querem mais atender partos normais. Fizeram tantas cesarianas que perderam a paciência e a mão. Sem essa vivência diária do parto normal, perde a capacidade de achar soluções e operam como solução para qualquer problema. Assim, acham que passar de 40 semanas, bebê grande, bebê de costas, bebê alto, tudo é indicação de cesariana. E a maioria das obstetras optou por cesáreas, para si e para suas parentes. Idem para os obstetras homens, em relação à suas mulheres. Portanto é claro que não irão fazer para você algo que consideram “pior” ou “mais arriscado”.
Às vezes o médico tem um discurso maravilhoso, e até acho que pode ter boa fé. Mas no fim, com a barriga crescendo, a pressão do convênio, da rotina, da vida doméstica, e o imenso prejuízo financeiro que ele certamente vai levar atendendo seu parto, tudo isso vai fazer com que ele não tenha outra saída a não ser pedir um ultrasom com 37 semanas e descartar seu parto porque o bebê está grande/pequeno, você está gorda/magra, o líquido ficou muito/pouco, etc.. E sua cesárea será marcada, junto com outras 2 ou 3 clientes, para facilitar a vida nada fácil que ele leva.
Eu não acho que seja sacanagem dele. Acho que ele é apenas mais um elo enferrujado de uma corrente que não nos serve mais. Não tenho soluções fáceis para você, nem sequer garantias. Só queria que você entendesse que a sua vontade, frente a essa imensa engrenagem que são os planos de saúde, os hospitais particulares, os médicos cansados e sobrecarregados, não vai representar muito, na hora da decisão. A nossa vontade fica tão menor do que tudo isso, que ela não consegue fazer a roda da engrenagem girar no sentido contrário.
Seria preciso muito mais do que desejo. Se quiser qualquer ajuda para achar as saídas, as rachaduras do sistema, me fala, que eu vou gostar muito de te ajudar. E se decidir marcar sua cesárea, faça-o sem o famigerado sentimento de culpa, que em nada nos ajuda. Entenda os riscos, minimize-os o tanto quanto seja possível, e pronto.
A maternidade não se resume ao parto, nem é definida pelo parto, assim como um casamento não se resume à cerimônia, nem por ela é definido. Eles são os portais, e como tal, tem sua importância. O que se perde num nascimento de qualidade, nós podemos recuperar ao longo da vida. Cada um de nós sabe até onde consegue ir, quais leões gostaria de matar por um nascimento suave, respeitoso, delicado, amoroso, silencioso.
Vá até onde você deseja e saiba que estou ao seu lado, sempre. Um abraço forte!”