Segundo a Organização Mundial da Saúde, a taxa de cesáreas maior que 15% é injustificável.

Foto por: Débora Klempous
Patrícia Schneider e a pequena Sara em sintonia com árvore e a terra, que produzem vida

Poucos filhos do Brasil nascem pelas mãos de uma parteira. O avanço da medicina batizou de pri­mitivo um rito que a igreja em ou­tros tempos batizou de demoníaco. O corpo transformado em máqui­na pela renascença é sentenciado desde as interferências mecânicas. Mesmo quando não precisa de­las. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a taxa de cesá­rea maior que 15% é injustificável. Há dois anos, nas redes públicas, o país registra 2% menos de partos normais. Nas clínicas privadas de Santa Catarina o índice de cesáre­as chega a 92%, de acordo com o Ministério da Saúde.

O obstetra Fernando Pupin Vieira classifica de duas formas a alta procura pela cesariana: como­dismo do médico – “uma cesárea leva no máximo uma hora, o parto natural pode levar um dia”; e sta­tus. “Parto era coisa de pobre, com a máxima ‘você fez agora aguenta’. Era um castigo. Mas quem pudes­se pagar não precisava sofrer”, diz.

Mas a reação entre parto nor­mal e cesárea é adversa. Pupin alerta: “Quem ganha de parto normal imediatamente cuida do bebê. A mulher que faz cesárea fica acamada, recebendo medica­ção. A cesárea é uma cirurgia de urgência, que foi banalizada. E os riscos são variados, como hemor­ragia, infecções e trombose”.

A iminência de infecção obri­gou a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) a criar nor­mas para as maternidades, visando diminuir cesáreas desnecessárias. Mas a procura aumentou 4% nos últimos dois anos. A Federação Na­cional de Obstetrícia e Ginecologia também interferiu , expondo que o bebê poderia sofrer de problemas respiratórios e prematuridade.

Há quem acredite que o jogo seja financeiro. “Hospitais indu­zem à cesariana, porque os gas­tos são maiores. Não pensam no conforto ou na saúde da mãe e da criança”, afirma Tiago Sagae, pós-graduado em Ciências Médicas.

Sem riscos, Sara chegou pronta para a vida

“Não irás conseguir”, disse a médica da maternidade Santa Helena, quando Patrícia Schneider deu entrada no local. Patrícia teimou. A bolsa havia rompido há 2 horas. Mas a vontade de merecer a filha desde o primeiro instante a fez lutar.

Com quatro dedos de dilatação, aguardava a avaliação do obstetra Fernando Pupin. E veio o diagnóstico esperado: o parto normal não ofereceria riscos. Com o máximo de dilatação – 10 cm – era hora de fazer força por Sara. Acompanhada do obstetra, da doula Cristina Melo e do marido, William, Patrícia se agachou, como fazem os bichos quando a cria rebenta, e empurrou. Uma, duas, tantas vezes.

E de supetão, expelida pelo corpo, pronta para vida, Sara caiu nas mãos de Fernando Pupin Vieira às 6h35 do dia 5 de abril, e foi dada à mãe, que a teve forte contra o coração.

Envolto pelos braços, ligado pelo cordão umbilical, estava o ser criado pelo seu corpo, de pele rosada, e ainda com sangue do útero onde morou por nove meses, um amor não experimentado, imensurável, mas valente e talvez maior que qualquer outro, e Patrícia sequer conhecia seu rosto…

Coube a William cortar o elo entre mãe e filha. E lembrou como foi pego de surpresa quando recebeu uma caixa de sapatinhos de bebê. A mulher estava com ciclo atrasado há quatro dias. Ele jamais suspeitaria. E depois viu aquela barriga crescer, o corpo e as vontades de Patrícia mudar. Ali toda emoção fazia sentido.

Quando Sara crescer, os pais a levarão até uma árvore, dessas opulentas, que parecem mães das outras, e nas raízes contorcidas enterrarão seu cordão umbilical. Um rito com a terra, que recebe os corpos de todos os seres mortos, mas produz a vida, num ciclo de infindáveis contradições e alguns milagres.

Mãe água

No último dia da lua cheia, Pris­cilla Cardoso Zimmermann sentiu as dores. Rafael guiou depressa 30 quilômetros até a clínica Ilha, no bairro Pantanal, em Florianópolis. A mala já estava no carro à espera da primeira filha do casal.

Rebeca estava tão ansiosa para trocar o ventre materno pelo mun­do que não esperou o resultado do domingo eleitoral: o avô disputava uma cadeira na Câmara Municipal de Palhoça. Mas a atenção da famí­lia afastou-se das urnas.

Como as fêmeas leiteiras, Pris­cilla estava em metamorfose: hor­mônios expelidos para a corrente sanguínea; o corpo se abrindo, pele, músculos, ossos; o útero em­purrando o bebê para fora; três contrações a cada dez minutos; bolsa rompida; e a água de mu­lher o verde do líquido amniótico e o vermelho do sangue logo tingi­ram como aquarela a banheira por onde Rebeca deslizou presa à mãe pelo cordão umbilical.

O obstetra Fernando Pupin Vieira num rápido lance pescou a minúscula forma de vida – incapaz de andar, mas exímia nadadora –, que se contorceu em posição de feto, como estava habituada, no peito da mãe, trêmula de prazer.

Voz. Pele. Respiração. O tum tum tum cardíaco. Rebeca, nasci­da às 5h08 do dia 7 de outubro de 2012, estava registrando as primei­ras vibrações da sua progenitora. Vieira, que assistiu mais uma criança vir ao mundo, reforçou sua convicção: “O parto é da mãe. A mulher que faz, com sua parte do bicho, conduzida pelo instinto. O obstetra só observa e intervém quando necessário”.

Com as mesmas lágrimas que pingaram durante toda gestação, Priscilla chorou soluçado ao ver Rafael cortar o fio de carne que ligava mãe e filha. Na sala ao lado, Vera Lúcia Cardoso rezava e agradecia pela neta ter girado no útero, há exa­tos sete dias, realizando o sonho da mãe: pari-la.

Priscilla conhecendo Rebecca.

Experiência e truques

Filha de parteira, Cristina Melo queria entender os segredos de pegar criança. Sabedoria escondida nas profundezas do feminino, banhada de sangue de mulher e água de criança. Aos 16 anos, acompanhou o primeiro parto. Aos 17, sentiu a emoção de ser tornar mãe. Desde lá soube que sua função era ajudar a trazer crianças ao mundo.

Cristina se matriculou no Gama (Grupo de Maternidade Ativa), onde aprendeu truques para ajudar na gestação, no parto e na maternidade. Formou-se doula, uma espécie de amiga da gestante, com saberes técnicos e experiência.

A doula também domina métodos para aliviar a dor no parto. Cristina recomenda água. “Banho de chuveiro, de banheira e bolsa com água quente são ótimos”, ensina.

Parto na água

                                                                            Foto por Carol Dias Fotografia

“O parto foi tomado da mulher”, diz obstetra

Contra a corrente, há um singelo movimento que busca a humanização do parto. O obstetra Fernando Pupin Vieira e a doula Cristina Melo são seus defensores. O médico declara que a maneira de trazer o filho ao mundo é uma escolha da mãe, que deve ser respeitada. Mas avisa: “Cesárea sem necessidade é uma violência obstétrica”. No hospital-escola da UFSC, Pupin demonstra a tentativa de devolver o parto para a mulher, pois é parte da natureza feminina. Fisiológico. Ancestral.

“O parto foi tomado da mulher. Até 2005, as mulheres ficavam na sala cirúrgica, desacompanhada e quem conduzia tudo era o obstetra e a enfermeira. O parto foi institucionalizado”, explica Vieira. Após 2005, uma lei decretou que as grávidas podem ser acompanhadas por familiares durante o nascimento dos filhos.

Débora Klempous/ND

Parto normal
Publicado em 21/10-14:57 por:
Ana Carolina Vilela. Atualizado em 22/10-18:26

Fonte: http://www.ndonline.com.br/mobile/noticias/36219-cesarianas-ainda-sao-maioria-mas-parto-normal-volta-a-ganhar-forca-em-sc.html